“ Desde criança, tive a tendência
para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos
que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se
sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser
dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro
de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias
figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo
a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me
vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um
pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua
maneira de encantar.”
“ Esta
tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra
gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta,
sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente
alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou.
Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo
nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatuto,
traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e
propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje,
a perto de trinta anos de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto,
vejo… E tenho saudades deles. “
“ Aí por
1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns
poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo
Álvaro de Campos, mas num estilo de meia irregularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa
que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo
Reis.)
Ano e meio,
ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de
inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não
lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o
poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de
Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a
escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos
poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi
o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um
título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o
aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.
Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a
sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta
e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os
seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.
Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a
Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a
sai própria inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido
Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente
– uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via.
E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me
impetuosamente um novo individuo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem
interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de
Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.”
“Mais
uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço
incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro
de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não
me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está
presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu
em Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem
educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro
de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o
horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por
Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura
média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso) não parecia tão frágil
como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas
seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais dois cm do que eu), magro
e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor,
olhos azuis; Reis de vago moreno mate; Campos, entre o branco e moreno, tipo
vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao
lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma –
só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em
casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.
Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no
Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um
latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro
de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia
estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem
a Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre.”
“Como escrevo em nome destes
três? Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular
que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que
subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para
escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em
muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado
ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio
e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo
porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma
simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa,
salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta,
e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o
português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez
de «eu mesmo», etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou
de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)”
in "Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa", ed. António
Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986