quarta-feira, 2 de abril de 2014

Análise de "Manias!" por Cesário Verde

Manias!

O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada, –
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

Estrutura interna
Este poema, tal como o já analisado “Ó áridas Messalinas”, tem como temas o amor e a mulher. O eu poético conta a história de um sujeito que conhecia que era amante de uma mulher que, apesar de possuir mau aspecto, era prepotente e exercia sobre ele uma grande influência.
Este poema, um soneto italiano, pode ser dividido em três partes lógicas.
A primeira parte é a primeira quadra, na qual o sujeito lírico faz uma pequena introdução, dando a sua opinião sobre o mundo e a vida. Faz um contraste um pouco lúgubre entre a tragédia e a comédia de que é feita a sociedade. Se, por um lado, existem as pessoas excessivamente preocupadas que encaram a vida como se fosse uma desgraça descomedida (“O mundo é velha cena ensanguentada…”), por outro lado, existem os que levam, ridiculamente, a vida de uma forma irreflectida (“A vida é chula farsa assobiada.”).
Daí parte para a segunda parte lógica do poema, iniciando o relato da história de um rapaz já falecido (“…hoje uma ossada…”), a qual serve de suporte para a sua visão jocosamente negra do mundo, já que trata do amor deste rapaz para com uma mulher muito pretensiosa e que exercia no rapaz uma influência tal que este se mostrava receosamente obediente (“…o dengue, em atitude receosa…”).
Na terceira parte do soneto (última estrofe), dá-se a apresentação da ideia principal, ao que se chama “fechar com chave de ouro”. O sujeito poético critica, de modo trocista, a submissão daquele rapaz perante aquela mulher, evidenciando a devoção a Deus por parte da mulher (“…que a amante ia ouvir missa!”) e a devoção àquela mulher por parte do rapaz (“…sujeição canina mais submissa…”).
As temáticas mais significativas abordadas por Cesário Verde neste poema são a humilhação sentimental e a imagética feminina.
O rapaz de quem se fala no poema é, então, o símbolo da humilhação sentimental, já que é totalmente dominado pela mulher que ama, apesar de esta ter mau aspecto (“esquálida e chagada”) e ser mais velha que este (“…já rugosa…”), o que acentua ainda mais o vexame deste rapaz.
Tal como em “Flores Velhas” e em “Ó áridas Messalinas”, também esta composição poética se refere a uma mulher, que, neste caso, é uma mulher fria, perversa, altiva, poderosa, que só deve explicações a Deus (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”), vaidosa, afectada e egocêntrica (“…cheia de jactância quixotesca.”), talvez de meia-idade (“…a deia já rugosa…”). Esta imagem da mulher é o símbolo da artificialidade citadina. Desta forma, mais uma vez a cidade está presente no poema na forma de mulher que serve para retratar os valores decadentes e a violência social.
Mais uma vez o Parnasianismo se encontra presente como corrente literária influente. Recorre-se bastantes vezes à descrição, (nomeadamente do rapaz, da mulher e do mundo), usando vocábulos concretos e claros. Está presente uma clara busca pela perfeição que se denota pela constante recorrência a vocabulário e a recursos estético-estilísticos que permitam uma maior expressividade. Existe também uma despersonalização da poesia, muito pelo facto de a história ser narrada na terceira pessoa. Além disto, tudo é descrito conforme realmente acontece.
Este poema é do mesmo período de “Ó áridas Messalinas”, tempo em que Cesário Verde se dedicou a elaborar poemas cujos temas eram o amor e a mulher. Na maior parte dos casos, estas composições poéticas são de tom satírico, que é o caso de “Manias!”. Isto é claramente evidenciado pela ironia presente no próprio título do poema.
A envolvência de Cesário neste poema é evidente, visto que existe não só a presença da cidade como elemento negativo, mas também da mulher como causa de humilhação, o que explica o facto de nesta altura, 1874, Cesário Verde ser um jovem cuja mentalidade era, em parte, influenciada pelo generalizado fascínio exercido pela mulher fatal e poderosa na sensibilidade do tempo. Este aspecto está também presente em “Ó áridas Messalinas”.

Unidade forma – conteúdo
O vocabulário utilizado neste poema é bastante variado e um pouco complicado já que não faz parte da linguagem geralmente usada no nosso quotidiano (“jactância”, “picaresca”, “pedantesca”, “quixotesca”, “deia”, “dengue”).
Relativamente à pontuação, pode-se verificar que, como cada uma das quadras encerra uma frase, os versos destas terminam com uma vírgula ou com ponto e vírgula, excepto o último verso que termina com ponto final, dando assim um término à frase. Também cada um dos versos dos tercetos encerra com uma vírgula, já que os dois tercetos englobam uma única frase, à excepção do último verso que encerra com o único ponto de exclamação do poema, já que este é o verso que revela de forma mais clara a ironia inerente ao texto.
Também se verifica o emprego do hífen na segunda quadra (“…-hoje uma ossada - …”) que tem como função a introdução de um pequeno à parte que nos dá uma informação suplementar.
Comparando “Manias!” com os outros dois poemas anteriormente analisados pode-se constatar que, no que diz respeito à linguagem, este poema é mais complexo do que os outros dois, o que é devido, em grande parte, aos vocábulos pouco usuais, como já foi referido. Assim, pode-se dizer que a linguagem é cuidada. No entanto, a construção sintáctica das frases é simples.
As principais figuras de estilo utilizadas são:
-  a metáfora (“Na sujeição canina mais submissa…”);
-  a adjectivação expressiva e abundante (“Perversíssima, esquálida e chagada…”);
-  a hipálage (“Levava na tremente mão nervosa…”);
-  a enumeração (“Perversíssima, esquálida e chagada…”);
-  a ironia (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”);
-  o assíndeto (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de remendos, picaresca…”);
-  a imagem (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de remendos, picaresca…”);
-  o disfemismo (“…hoje uma ossada…”);
-  a exclamação (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”).

Estrutura externa
Este poema é um soneto italiano, sendo constituído por duas quadras e dois tercetos. Possui, portanto, catorze versos, que são de dez sílabas, o que se pode confirmar pela seguinte análise:

“O / mun / do é / ve / lha / ce / na en / san / guen / ta / da,
  1      2         3      4       5     6        7         8       9       10
Co / ber / ta / de / re / men / dos, / pi / ca / res / ca;
  1     2      3     4     5       6       7        8     9     10
A / vi / da é / chu / la / far / sa a / sso / bi / a / da,
1     2      3        4      5      6       7       8     9     10
Ou / sel / va / gem / tra / gé / dia / ro / ma / nes / ca.”
 1      2      3       4       5      6      7      8     9      10

O esquema rimático do soneto é//ABAB/ABAB/CDC/DCD//, pelo que existe rima cruzada. Todas as rimas são consoantes porque existe sempre correspondência de sons a partir da última vogal tónica.
A maior parte das rimas são pobres (picaresca / romanesca, rugosa / receosa, pedantesca / quixotesca, receosa / nervosa), existindo algumas rimas ricas (ossada / chagada, preguiça / submissa, submissa / missa).


Parnasianismo

Como muitos dos movimentos culturais, o Parnasianismo teve sua inspiração na França, de uma antologia poética intitulada O Parnaso contemporâneo, publicada em 1866. Parnaso era o nome de um monte, na Grécia, consagrado a Apolo (Deus da luz e das artes) e às musas (entidades mitológicas ligadas às artes).  
No Brasil, em 1878, em jornais cariocas, um ataque à poesia do Romantismo gerou uma polémica em versos que ficou conhecida como a Batalha do Parnaso. Entretanto, considera-se como marco inicial do Parnasianismo no país o livro de poesias Fanfarras, de Teófilo Dias, publicado em 1882. O Parnasianismo prolongou-se até a Semana de Arte Moderna, em 1922. 
O Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo foram movimentos literários contemporâneos: Realismo e Naturalismo na prosa, e Parnasianismo na poesia. Enquanto a prosa realista representou uma reacção contra a literatura sentimental dos românticos, a poesia parnasiana pregou a rejeição do “excesso de lágrimas” e da linguagem coloquial e declamatória do Romantismo, valorizando o cuidado formal e a expressão mais contida dos sentimentos, com um vocabulário elaborado (às vezes, incompreensível por ser tão culto), racionalista e temática voltada para assuntos universais. 

Características:
- Formas poéticas tradicionais: com esquema métrico rígido, rima, soneto. 
- Purismo e preciosismo vocabular, com predomínios de termos eruditos, raros, visando à máxima precisão, e de construções sintáticas refinadas. Escolha de palavras no dicionário para escrever o poema com palavras difíceis. 
- Tendência descritivista,buscando o máximo de objetividade na elaboração do poema, assim separando o sujeito criador do objeto criado.
- Postura antirromântica, baseada no binômio objetividade temática/culto da forma.
- Destaque ao erotismo e à sensualidade feminina. 
- Referências à mitologia greco-latina. 
- O esteticismo, a depuração formal, o ideal da “arte pela arte”. O tema não é importante, o que importa é o jeito de escrever, a forma.
- A visão da obra como resultado do trabalho, do esforço do artista, que se coloca como um ourives que talha e lapida a joia. 
- Transpiração no lugar da inspiração romântica. O escritor precisa trabalhar muito, “suar a camisa”, para fazer uma boa obra. O poeta é comparado a um ourives.  


Bibliografia - Cesário Verde

O poeta português José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa no dia 25 de fevereiro de 1855. 

Conhecido por seus dois últimos nomes, ele é visto como um dos predecessores  e grande influência do estilo poético realizado no século XX em Portugal.

Cesário Verde teve uma origem humilde, era filho de um comerciante e agricultor chamado José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde. Em 1873, inicia seus estudos acadêmicos no Curso Superior de Letras, mas frequenta as aulas por apenas alguns meses. Neste período, acaba conhecendo um amigo que levaria para o resto da vida, Silva Pinto, também português e escritor. Naquela época, as atividades de Cesário eram produzir muitas poesias, que acabavam sendo publicadas em periódicos, além de trabalhar no comércio, ofício que herdara de seu pai.

tuberculose foi uma maldição na vida de Cesário Verde. Após perder a irmã e o pai para esta doença, o poeta começa a ter sintomas da enfermidade em 1877. Apesar da tristeza que tudo isso lhe causava, o mal lhe serviu de inspiração para a produção de um de seus mais belos poemas, “Nós”, de 1884.

“Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!”
(trecho da poesia “Nós”)

Cesário Verde não conseguiu escapar da doença e faleceu aos 30 anos, em 19 de julho de 1886. Silva Pinto, em sua homenagem, organizou uma compilação com a poesia do amigo, que chamou de “O Livro de Cesário Verde”. Em 1901 este livro foi publicado.

Na poesia de Cesário Verde, alguns temas predominantes são o campo e a cidade. Seu estilo era delicado, com emprego de artifícios impressionistas e uma sensibilidade dificilmente vista no meio literário. A forma de expressão utilizada era mais natural, pois o poeta evitava o lirismo clássico.

As características mais importantes encontradas na análise de sua obra são imagens muito visuais que tinham o objetivo de dimensionar a realidade do mundo, a mistura do moral com o físico, a combinação de sensações, comparações, metáforas, sinestesias, versos decassílabos e quadras.

Um tema recorrente nas poesias de Cesário Verde é a mulher. Ele nos apresenta dois tipos femininos, sempre atrelados aos locais em que ambienta seus versos. Na cidade, cria uma mulher calculista, madura, frívola, fria, autodestrutiva e dominadora. Em sua representação do campo, o poeta monta arquétipos de mulheres pobres, feias, doentes, esforçadas e trabalhadoras.