Manias!
O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada, –
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,
Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!
Estrutura interna
Este poema, tal como o já analisado “Ó áridas Messalinas”, tem como temas o
amor e a mulher. O eu poético conta a história de um sujeito que conhecia que
era amante de uma mulher que, apesar de possuir mau aspecto, era prepotente e
exercia sobre ele uma grande influência.
Este poema, um soneto italiano, pode ser dividido em três partes lógicas.
A primeira parte é a primeira quadra, na qual o sujeito lírico faz uma
pequena introdução, dando a sua opinião sobre o mundo e a vida. Faz um
contraste um pouco lúgubre entre a tragédia e a comédia de que é feita a
sociedade. Se, por um lado, existem as pessoas excessivamente preocupadas que
encaram a vida como se fosse uma desgraça descomedida (“O mundo é velha cena
ensanguentada…”), por outro lado, existem os que levam, ridiculamente, a vida
de uma forma irreflectida (“A vida é chula farsa assobiada.”).
Daí parte para a segunda parte lógica do poema, iniciando o relato da
história de um rapaz já falecido (“…hoje uma ossada…”), a qual serve de suporte
para a sua visão jocosamente negra do mundo, já que trata do amor deste rapaz
para com uma mulher muito pretensiosa e que exercia no rapaz uma influência tal
que este se mostrava receosamente obediente (“…o dengue, em atitude receosa…”).
Na terceira parte do soneto (última estrofe), dá-se a apresentação da ideia
principal, ao que se chama “fechar com chave de ouro”. O sujeito poético
critica, de modo trocista, a submissão daquele rapaz perante aquela mulher,
evidenciando a devoção a Deus por parte da mulher (“…que a amante ia ouvir
missa!”) e a devoção àquela mulher por parte do rapaz (“…sujeição canina mais
submissa…”).
As temáticas mais significativas abordadas por Cesário Verde neste poema
são a humilhação sentimental e a imagética feminina.
O rapaz de quem se fala no poema é, então, o símbolo da humilhação
sentimental, já que é totalmente dominado pela mulher que ama, apesar de esta
ter mau aspecto (“esquálida e chagada”) e ser mais velha que este (“…já
rugosa…”), o que acentua ainda mais o vexame deste rapaz.
Tal como em “Flores Velhas” e em “Ó áridas Messalinas”, também esta
composição poética se refere a uma mulher, que, neste caso, é uma mulher fria,
perversa, altiva, poderosa, que só deve explicações a Deus (“O livro com que a
amante ia ouvir missa!”), vaidosa, afectada e egocêntrica (“…cheia de jactância
quixotesca.”), talvez de meia-idade (“…a deia já rugosa…”). Esta imagem da
mulher é o símbolo da artificialidade citadina. Desta forma, mais uma vez a
cidade está presente no poema na forma de mulher que serve para retratar os
valores decadentes e a violência social.
Mais uma vez o Parnasianismo se encontra presente como corrente literária
influente. Recorre-se bastantes vezes à descrição, (nomeadamente do rapaz, da
mulher e do mundo), usando vocábulos concretos e claros. Está presente uma
clara busca pela perfeição que se denota pela constante recorrência a
vocabulário e a recursos estético-estilísticos que permitam uma maior
expressividade. Existe também uma despersonalização da poesia, muito pelo facto
de a história ser narrada na terceira pessoa. Além disto, tudo é descrito
conforme realmente acontece.
Este poema é do mesmo período de “Ó áridas Messalinas”, tempo em que
Cesário Verde se dedicou a elaborar poemas cujos temas eram o amor e a mulher.
Na maior parte dos casos, estas composições poéticas são de tom satírico, que é
o caso de “Manias!”. Isto é claramente evidenciado pela ironia presente no
próprio título do poema.
A envolvência de Cesário neste poema é evidente, visto que existe não só a
presença da cidade como elemento negativo, mas também da mulher como causa de
humilhação, o que explica o facto de nesta altura, 1874, Cesário Verde ser um
jovem cuja mentalidade era, em parte, influenciada pelo generalizado fascínio
exercido pela mulher fatal e poderosa na sensibilidade do tempo. Este aspecto
está também presente em “Ó áridas Messalinas”.
Unidade forma – conteúdo
O vocabulário utilizado neste poema é bastante variado e um pouco
complicado já que não faz parte da linguagem geralmente usada no nosso
quotidiano (“jactância”, “picaresca”, “pedantesca”, “quixotesca”, “deia”,
“dengue”).
Relativamente à pontuação, pode-se verificar que, como cada uma das quadras
encerra uma frase, os versos destas terminam com uma vírgula ou com ponto e
vírgula, excepto o último verso que termina com ponto final, dando assim um
término à frase. Também cada um dos versos dos tercetos encerra com uma
vírgula, já que os dois tercetos englobam uma única frase, à excepção do último
verso que encerra com o único ponto de exclamação do poema, já que este é o
verso que revela de forma mais clara a ironia inerente ao texto.
Também se verifica o emprego do hífen na segunda quadra (“…-hoje uma ossada
- …”) que tem como função a introdução de um pequeno à parte que nos dá uma
informação suplementar.
Comparando “Manias!” com os outros dois poemas anteriormente analisados
pode-se constatar que, no que diz respeito à linguagem, este poema é mais
complexo do que os outros dois, o que é devido, em grande parte, aos vocábulos
pouco usuais, como já foi referido. Assim, pode-se dizer que a linguagem é
cuidada. No entanto, a construção sintáctica das frases é simples.
As principais figuras de estilo utilizadas são:
- a metáfora (“Na sujeição canina mais submissa…”);
- a adjectivação expressiva e abundante (“Perversíssima, esquálida e
chagada…”);
- a hipálage (“Levava na tremente mão nervosa…”);
- a enumeração (“Perversíssima, esquálida e chagada…”);
- a ironia (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”);
- o assíndeto (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de
remendos, picaresca…”);
- a imagem (“O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de
remendos, picaresca…”);
- o disfemismo (“…hoje uma ossada…”);
- a exclamação (“O livro com que a amante ia ouvir missa!”).
Estrutura externa
Este poema é um soneto italiano, sendo constituído por duas quadras e dois
tercetos. Possui, portanto, catorze versos, que são de dez sílabas, o que se
pode confirmar pela seguinte análise:
“O / mun / do é / ve / lha / ce / na en / san / guen /
ta / da,
1
2
3 4
5
6 7
8 9 10
Co / ber / ta / de / re / men / dos, / pi / ca / res /
ca;
1
2 3
4 5
6
7 8
9 10
A / vi / da é / chu / la / far / sa a / sso / bi / a /
da,
1
2 3
4 5
6 7
8 9 10
Ou / sel / va / gem / tra / gé / dia / ro / ma / nes /
ca.”
1
2 3
4 5
6 7
8 9 10
O esquema rimático do soneto é//ABAB/ABAB/CDC/DCD//, pelo que existe rima
cruzada. Todas as rimas são consoantes porque existe sempre correspondência de
sons a partir da última vogal tónica.
A maior parte das rimas são pobres (picaresca / romanesca, rugosa /
receosa, pedantesca / quixotesca, receosa / nervosa), existindo algumas rimas
ricas (ossada / chagada, preguiça / submissa, submissa / missa).